quarta-feira, 15 de junho de 2011

Prefácio do livro Memórias de Esquerda na integra - por Valéria Lobo

Apresento neste post, na integra, o Prefácio do Livro Memórias de Esquerda: o Movimento Estudantil em Juiz de Fora de 1974 a 1985, de autoria da profª Drª Valéria Marques Lobo.
A historiografia brasileira tem se ressentido da escassez de publicações relacionadas aos períodos mais recentes de nossa história. Seja pelo temor de não lograr o adequado distanciamento em relação ao objeto, seja pela dificuldade de encontrar fontes criteriosamente organizadas, os historiadores têm privilegiado o estudo de tempos mais remotos e deixado quase exclusivamente a cargo dos sociólogos, cientistas políticos e economistas a prerrogativa de desvendar nossa história recente. Além das dificuldades apontadas, ao se debruçar sobre a história de um período recente, o historiador do tempo presente se expõe não apenas à crítica de seus pares nos meios acadêmicos, tal como os demais, mas se submete mesmo ao escrutínio dos sujeitos da história, elevando-se assim os custos e os riscos da empreitada.
Gislene Lacerda aceitou os riscos e encarou corajosamente os desafios de escrever sobre a experiência de pessoas que povoaram a história que relata e que continuam aí, dando sequência às suas próprias histórias. E o fez com propriedade, apoiando-se inclusive nas memórias dos sujeitos dessa história.
O estudo que agora vem a público na forma deste livro tem o mérito de trazer à luz parte da história de um período ainda pouco perscrutado pelos historiadores, o que já seria suficiente para valorizar o empenho da autora. Com efeito, ao abordar o movimento estudantil em Juiz de Fora entre 1974 e 1984, o livro contribui para suprir três lacunas deixadas pela historiografia. A história do movimento estudantil, a intervenção da sociedade brasileira no processo de distensão do regime militar e a história de Juiz de Fora nas ultimas décadas do século passado.
No entanto, a obra que o leitor tem em mão merece ser valorizada para além dessas dimensões. O empenho em levantar e sistematizar fontes escritas, boa parte delas dispersas por arquivos pessoais; o rigor no emprego da metodologia da História Oral, ainda carente de balizas consensuais; o cuidado ao mobilizar os conceitos empregados; o distanciamento crítico estabelecido em relação ao objeto resultaram num trabalho primoroso de recuperação da trajetória do movimento estudantil em Juiz de Fora durante o período de declínio do ultimo ciclo autoritário brasileiro. Nesse sentido, a obra vem somar-se aos poucos estudos sobre a participação dos estudantes no processo de redemocratização do país.
Não se trata, todavia, apenas de uma narrativa acerca da ação dos estudantes de Juiz de Fora no período situado entre os governos do Gal. Geisel e a Campanha das Diretas. Ao se debruçar sobre a trajetória desses estudantes, a autora buscou compreender em que medida a militância estudantil da cidade se inseria num processo mais amplo e quais eram as suas peculiaridades, dialogando com as poucas obras referentes ao movimento estudantil do período abordado. Ao contrastar o conteúdo dos trabalhos referentes ao movimento estudantil do período anterior com suas fontes,  a autora buscou identificar, além dos traços de continuidade que ligam a ação estudantil do ocaso do regime militar com a Geração de 68, as rupturas e mudanças que o seu sujeito experimentou. Mais do que isso, Gislene procurou, ainda, situar as diversas correntes do movimento estudantil de Juiz de Fora no espectro das esquerdas brasileiras, a fim de compreender as convergências e as disputas que se verificam no período analisado. Por fim, buscou de forma bastante original estabelecer os nexos entre as manifestações culturais e políticas que faziam parte do universo estudantil no ocaso do regime militar. O que se verifica é, pois, uma composição primorosa do objeto de estudo.   
Ao contrastar o movimento estudantil do final dos anos 70, vitorioso na acepção da autora, com o movimento empreendido pelos estudantes que militaram no período mais duro do regime militar, Gislene observa que, não apenas por terem atuado numa conjuntura mais favorável, mas também porque souberam tirar proveito do legado da geração anterior, elegendo uma tática de atrair as suas bases para a luta não violenta pelas liberdades democráticas, as lideranças estudantis que atuaram nos últimos anos do regime militar lograram sucesso. A mobilização dessa vanguarda estudantil alimentou o processo de abertura política, ainda que as divergências internas, acentuadas a partir da reconstrução da UNE, em 1979, tenham contribuído para o deslocamento dos estudantes do protagonismo na cena nacional, obstando, inclusive, a conquista de certos benefícios especificamente relacionados aos interesses dos estudantes. Nesse caso, Gislene salienta que se até 1979 o tema central que mobilizava os estudantes era a luta pelas liberdades democráticas, a partir daí as questões mais específicas, relacionadas sobretudo ao transporte e alimentação estudantis, ganharam destaque na agenda dos estudantes de Juiz de Fora
Quando situa os estudantes e as correntes estudantis de Juiz de Fora no espectro mais amplo das correntes de esquerda no plano nacional, a autora identifica a presença na cidade tanto de seções de tendências nacionais, como de grupos formados na cidade, que embora interagissem com correntes nacionais, não tinham uma ligação direta com elas, indicando certo grau de autonomia dos estudantes locais. 
Ao analisar as manifestações culturais empreendidas pelos estudantes, a autora destaca a presença de um elo entre política e cultura, ressaltando que o empenho em organizar atos culturais era caudatário da percepção desenvolvida pelos estudantes do período de transição política de que isso era uma estratégia eficaz de mobilização. Com efeito, esses eventos culturais, em geral bem sucedidos, transformavam-se também em palanque político, facilitando a aproximação entre lideranças estudantis e suas bases. Nessa medida, a cultura servia à política, favorecendo a mobilização em prol das liberdades democráticas e, or conseguinte, a abertura do regime.
Essas são algumas das questões trabalhadas de forma cuidadosa e criativa por Gislene. Por tudo isso esse livro vem preencher de forma muito pertinente uma importante lacuna não apenas nos estudos regionais, mas também na historiografia nacional, o que faz da obra leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam pela história recente da sociedade brasileira.
Profª Drª Valéria Marques Lobo
Professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora

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